Passado/presente.3

Se algumas memórias emergem como algo insólito à semelhança de uma crise na narrativa fantástica, outras permanecem e encontram ligação ao presente. A arte contemporânea oferece múltiplos exemplos do que acabo de referir – sobretudo a escultura mas também a pintura.

“…E detive-me na observação do desenho da aranha: oscilava entre o mais rigoroso paleolítico e a mais estranha e elétrica modernidade, uma combinação perfeita” (de: Montevideu – Enrique Vila-Matas.”

Os artistas, sobretudo na área do desenho criam uma relação entre passado e presente. Ao fazê-lo, libertam-se do aspeto obsessivo ou perturbador da memória e, muitas vezes, abrem portas para outras formas.

Mesmo sem ser artistas, poderemos fazer evoluir memórias (imagens, sons) que nos perturbam. Partindo da forma primeira, alongamos, aumentamos o volume, a cor, a materialidade, a textura – poderemos ver-nos a fazer de uma cobra um anel. Em última análise, poderemos fazer evoluir a forma para um outro estádio de evolução. Poderemos transformar um lagarto numa ave, por exemplo. Veremos cuidadosamente as fases de transformação e, depois, concentramo-nos na forma final. Para que a mudança ganhe estabilidade será necessário repetir.

Poderemos, intencionalmente, seguir o caminho inverso. Nesse caso, deveremos ficar atentos à regressão que, naturalmente, acontece.

Antoni Tàpies é um pintor catalão dos mais significativos do século xx. Usa materiais pouco nobres, alguns resultantes dos destroços da segunda guerra. As suas telas – algumas de grande dimensão – apresentam superfícies matéricas construídas com pó, gesso, areia…

Considerava que o observador sentiria essas pinturas como incompletas e, seria levado a completá-las, entrando, assim, no processo criativo.

Eu – e penso que não só eu – levaria essas extensões monocromáticas de tons acastanhados e escuros até às paisagens primordiais relativas à formação da terra.

Mas se ele cria (e motiva a criar essa relação), consegue trazer o passado para o presente.

É, sobretudo, quando pintamos ou desenhamos (ou escrevemos) numa atitude de desprendimento, sem ter um objetivo definido, que esses encontros com o passado (os mais interessantes) surgem.

Poderemos aprender a aproveitá-los. Poderemos criar outras relações – a criatividade é isso mesmo – ou libertar-nos deles.