“Do fim dos tempos, num tremor imparável, surgiu a primeira personagem, grossa e tosca, à espera de ser retocada.
Mal se lhe adivinhavam os braços que queriam abrir-se, forçando uma rigidez de pedra e a forma das mãos perdia-se no conjunto informe, onde se percebiam, difíceis, os contornos do tronco e das pernas. A cabeça esboçava-se, apenas, num movimento em curva que agonizava ao encontrar-se com a linha direita dos ombros.
-Seria homem ou mulher?
(de: Textos)
Encontramos, em cerâmica, representações primeiras da figura humana que poderiam corresponder à imagem que a descrição em cima sugere. São imagens inteiras, pouco diferenciadas e que correspondem a uma primeira forma de representação.
Mas o importante, aqui, é a forma como a imagem surge.
Consideremos, agora, uma narrativa de Cortázar cujo título é “Verão”. Cortázar é uma autor de reconhecida originalidade.
Ao lermos o conto (fantástico) e se já estivermos avisados para o devir do fantástico neste tipo de narrativas, encontraremos um primeiro momento de um real sem perturbação (banal até) que é quebrado por um fantástico em que aparece um cavalo que tem caraterísticas de um monstro ameaçador e provoca o pânico no casal, sobretudo na mulher.
Depois, o cavalo vai embora (perguntamo-nos mesmo se lemos o que lemos) e o real volta.
Leiamos os excertos:
“É um cavalo, disse Mariano sem acreditar no que dizia, parece um cavalo, ouvi os cascos, está a galopar no jardim. Com as crinas, os beiços parecendo sangrar, uma enorme cabeça branca roçava a janela, o cavalo mal os olhou, a mancha branca desapareceu para a direita, ouviram novamente os cascos, um silêncio súbito da lado da escada…”
“Já te disse que ele quer entrar, está raivoso, quer entrar. Os cavalos não se enraivecem, que eu saiba, disse Mariano…”
“Já passou, já passou, disse Mariano, sentando-se junto dela e abanando-a suavemente, foi só um susto. “
O aparecimento de uma memória remota segue um percurso idêntico. Num presente mais ou menos anódino, irrompe uma memória (através de uma imagem, som…) que perturba (pode perturbar seriamente). Depois, volta o presente mais ou menos perturbado.
Se a perturbação for intensa pode induzir comportamentos reais.
Não sendo reais, estas memórias, são sentidas como reais. Vamos designá-las por não-fatuais.