Olhos Grandes

Poderemos continuar à procura de pérolas.

Enquanto isso, fica esta pequena narrativa:

Os olhos grandes do lémure

Partiria no próximo comboio. Prometera isso a si mesmo – cumpriria.

O seu pensamento ficaria naquela cidade, nos passeios estreitos, nas ruas íngremes, nos monumentos antigos. E também na sua família, nos seus amigos.

Afinal por que teria de partir?

Um doloroso sentimento de morte impediu-o de responder.

O comboio foi anunciado pela voz cantante habitual e, ele, Rui, juntou dois sacos e preparou-se.

Quando o comboio parou, olhou a grande distância entre o cais e o comboio.  Esticou a perna como se estabelecesse uma ponte sobre um abismo. Subiu as escadas, percorreu o corredor, encontrou o seu lugar e instalou-se.

 Uma canção triste ecoava dentro de si – era uma canção de dor.

Em seis meses, habituar-se-ia ao outro lado – assim lhe dissera a amiga Elsa já acostumada a partir. Começaria a sentir a outra terra como a sua terra. Talvez já tivesse amigos ou mesmo um amor

(todos precisamos de um amor)

O comboio entrara numa zona de planura, as árvores, à beira da linha, fugiam e o seu espírito fugia também. Parava, por instantes, sobre uma pedra, um animal, uma colina e, depois, fugia.

Irrequieto e sonhador, o seu espírito arrastava o seu corpo à procura, de outros céus, de outras terras. Em noites de insónia, fugia no tempo, encontrava o passado nos sítios mais incríveis – numa floresta densa, num campo de neve, num céu que parecia incendiar-se e procurava sentidos que já tinham desaparecido. Voltava quando podia – às vezes com dificuldade – e trazia para o presente uma emoção nova, ainda que muito antiga.

Um dia, ou uma noite, encontrou num bosque verde, agarrado ao ramo de uma árvore, um pequeno animal castanho, de olhos salientes e atentos, semelhante a um lémure. A sua emoção foi excessiva.

Não pôde entendê-la.

Os olhos do animal encantaram-no. Ficou a olhá-los e sentiu que os conhecia. Onde tinha já visto aqueles olhos espantados?

Rebuscou na sua memória e encontrou uma pequena figurinha, em cerâmica grega. Quis criar uma conexão; mas o comboio travou com violência e, depois, imobilizou-se.

Ficariam muito tempo naquele descampado até que alguém viesse e consertasse a avaria. Meia hora, depois, passou, em sentido contrário, um outro comboio. Quem não quisesse esperar, poderia regressar ao início e, no dia seguinte, recomeçar.

Ele decidiu regressar, mas, no dia seguinte, não recomeçaria – ficaria na terra onde estavam os seus amigos – era aquela a sua terra.

Teria de levar consigo o pequeno lémure de olhos grandes e espantados – não se atrevia a deixá-lo no passado.

(de: Entre ontem e amanhã)