A cobra é talvez um dos símbolos que mais aparece como manifestação de memória remota. É também um dos mais temíveis.
Neste texto de Carlos Ruiz Zafon, a cobra aparece ligada a um som – ao som a que ela é associada.
É sobretudo na ficção fantástica que encontramos influências da memória remota – eu diria mesmo que a literatura fantástica se alimenta, essencialmente, de memória remota. Os símbolos, o pano de fundo em que a ficção se desenrola, retiram conteúdo deste contexto. De uma maneira geral quanto mais remota mais aterrorizadora.
Há, naturalmente, diferenças em termos de elaboração – essa influência pode ser mais ou menos direta. Pode jogar mais com o abstrato ou ir na direção do concreto.
Até a linguagem sofre o contágio.
Veremos isso.
“A rapariga puxou pela maçaneta para fechar o quarto e um dos relevos da porta prendeu-se no cordão que tinha ao pescoço. Simultaneamente, um som grave e arrepiante ressoou atrás de si, o sibilar de uma grande serpente. Hannah sentiu lágrimas de terror deslizarem-lhe pela face. O cordão partiu-se e ouviu a medalha cair no escuro. Livre da prisão, Hannah enfrentou o túnel que se abria ante ela. Num dos extremos, a porta que conduzia à escadaria da ala posterior estava aberta. O sibilo fantasmagórico ouviu-se de novo. Mais perto. Hannah correu para o início da escadaria. Segundos mais tarde identificou o som do puxador que começava a girar na penumbra. Desta vez, o pânico arrancou-lhe um uivo da garganta…”
(de: As Luzes de Setembro)
Hannah fica enredada no medo (terror), perde o controlo, regride:
” Desta vez, o pânico arrancou-lhe um uivo da garganta”.
A linguagem é contaminada – os exemplos são retirados do livro:
“A sombra abriu as mandíbulas”, “a sombra reptava”…
A temática é idêntica à das narrativas deste género:
Luz (ou falta dela), túnel, prisão, dentes afiados:
“A cada passo que dava, a jovem repetia que não havia ninguém na casa e que a sensação de ser observada era uma simples ilusão da sua mente.”
…”mas não pôde afastar o olhar daquele infernal predador…”
…”e aqueles dentes longos e afiados…”
Nas histórias infantis – ainda que o contexto mágico suavize os efeitos de terror – encontramos, repetidamente, narrativas de conteúdo idêntico, ilustradas pelos mesmos símbolos (ou semelhantes). Também aí aparecem sons que atemorizam e até cheiros.
Isto é ficção, mas na vida real, se houver regressão, é vivido como verdadeiro e pode levar a passagens ao ato graves.