“Há já muito tempo – no tempo em que havia dragões… – Miguel acentuou a palavra dragões e fez um gesto largo em direção ao passado.
Sílvia seguiu o gesto a perder-se no tempo e, depois, perguntou:
-Já não há dragões, agora?
-Não, já não há – morreram todos há muitos milhões de anos.
-Então como é que as pessoas se lembram, ainda, deles?
-Bom, se continuas com perguntas…
-Não acabas a história – concluiu Sílvia. Vá lá! Continua!
-Contrariado, Miguel dispôs-se a continuar – no sítio onde agora está a rocha branca havia um palácio magnífico. Dentro, vivia, prisioneira, uma moira. A entrada do palácio era guardada por um temível dragão e…
-Tu serias capaz de matar o dragão?
-Bom, desisto, esquece!”
(textos)
Os dragões temíveis, que deitam fogo pela boca, que voam, que guardam a entrada de tesouros, fazem parte de forma repetida – ainda que com variantes – do universo das narrativas atemporais: fábulas, lendas, contos tradicionais.
Os monstros de tamanhos desmesurados, sem forma definida, ficam próximos do informe, da massa gigante que remete para o começo e que poderá submergir-nos (remetendo-nos, a nós, ao informe). Regressar ao informe é tudo o que não queremos – teríamos de sofrer os tormentos que a matéria sofre para se diferenciar.
Estes monstros são aproveitados em narrativas de terror.
O que significa uma princesa prisioneira ou qual o sentido de tesouro a ser guardado?
– A princesa ou o tesouro poderão ter o mesmo significado – varia de acordo com a cultura ou a época.
Há memórias que se atualizam em determinados momentos e não noutros. Há mesmo momentos, na história em que, travestidas, funcionam como sendo reais e estão na base de perseguições, torturas, caça às bruxas, aos pretos, aos judeus…
Um fenómeno idêntico poderá acontecer a nível individual – a ativação de memórias temíveis, poderá levar-nos a atos que, noutros momentos, não cometeríamos.
Poderá parecer que não há relação com o que vem sendo dito; mas há – o passado toma conta do presente e submerge o eu.