Retomemos o início:
“A minha história, a dos meus antepassados e dos antepassados dos meus antepassados, tem as suas raízes para lá da história dos homens, na história da vida, uma história já longa … “
As memórias de histórias anteriores à nossa, no percurso evolutivo, vêm fornecendo matéria para a elaboração de narrativas orais, mitologias, lendas, contos tradicionais e até para narrativas escritas elaboradas nos nossos dias. O maravilhoso das histórias infantis bebe nessas memórias. Já transformadas, duma maneira geral, são muitas vezes uma ténue sombra da informação que as motivou. Fazem até percursos divergentes no sentido de corresponderem a desejos e sonhos, ou de contrariarem insatisfações.
Todos desejamos escrever um livro ou melhor – todos desejamos escrever uma história – ou melhor – todos desejamos escrever a nossa história.
Alterada no tempo, interpretada por personagens que nós criamos, acabamos sempre por estar lá, na história que queremos escrever, que precisamos de escrever. Perdidos num infinito misterioso, temos necessidade de nos encontrar.
Apesar dos horrores das memórias – sobretudo das que se referem às primeiras histórias (da terra e das primeiras criaturas) – aparecem memórias que alimentam a nostalgia do viver segundo a natureza, do desejo de liberdade perdida…
Os excertos que, a seguir, transcrevo, são retirados do livro “O feitiço da lua azul” de Joanne Harris (publicado em 2018).
“Hoje sou uma raposa. Poderia ser uma coruja, uma lebre, uma cotovia, um lobo ou uma lontra. O povo viajante pode assumir qualquer aparência…”
“Hoje sou uma rã pintalgada à beira de um lago. O lago é profundo como um pântano: as suas águas, frias da montanha. Uma dúzia de cascatas e ribeiros vêm mergulhar os pés no lago; vivem lontras nas ilhotas que se erguem acima da superfície.”
A memória vai ao passado, torna-se presente, depois regride, depois avança iludindo o tempo – o tempo que nós, humanos, criámos.