Encher, triste

Encher, triste

Foi no final da tarde de um dia intenso. Estavam sentados no muro baixo que contornava a pequena propriedade. Falavam do prazer de cultivar, de ver crescer as plantas, da recompensa dos frutos, do afeto aos animais.

O sol caía, a sombra anunciava-se.

– Às vezes, sinto-me triste, triste sem perceber a razão – disse a rapariga, suspirando.

– É como se caísses num buraco… completou o rapaz.

-Também te acontece?

– Às vezes.

– Como dás a volta? – quis ela saber.

– Nem sempre dou. Quando o meu pai morreu, eu fiquei muito triste durante muitos dias. Tentei reagir – toda aquela tristeza estava a fazer-me mal.

– Eras muito ligado ao teu pai?

– Era muito ligado, sim, ainda que sentisse que ele gostava mais do meu irmão.

Um dia, tinha um trabalho para fazer e não encontrava nada que me inspirasse – era como se tivesse sido esvaziado e não encontrasse matéria para a forma do meu vazio…hesitou… não sei me entendes…

– Entendo, sim – já tive vazios desses que não aceitam qualquer matéria para serem preenchidos – disse a rapariga.

…larguei o computador, encostei-me na cadeira, fechei os olhos e pensei – tenho de fazer alguma coisa por mim …

…fiquei em silêncio – a cabeça apoiada nas mãos. Fechei os olhos. Passados instantes tive a ideia de enviar um sentimento de alegria a todas as partes do meu corpo.

Então, os meus olhos interiores viram a alegria a chegar até às extremidades dos dedos dos pés, das mãos, à minha coluna, aos meus órgãos internos – a todo o corpo.

– Funcionou? – perguntou, animada.

– Fiquei bem melhor; mas sobretudo foi uma sensação muito boa.

– De cheio, suponho.

– De bom cheio.

(de “Entre ontem e amanhã)